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Com o selo da Reforma Agrária, assentamentos plantam e colhem de tudo pelo país

Por Vitor Nuzzi
Da Revista do Brasil

Seu Antônio carpina a terra. São 60 anos de experiência – aos 8, começou a ajudar os pais. Já foi meeiro, hoje é assentado. “Nunca trabalhei empregado em firma”, conta Antônio Paulino Santo, que trabalha na Agrovila III, uma área de assentamentos em Itapeva, no sudoeste paulista, a 270 quilômetros da capital e já perto da divisa com o Paraná. Sete agrovilas espalhadas na região reúnem 450 famílias, aproximadamente 1.800 pessoas, em 17.000 hectares. Em todo o país, há 54 cooperativas produzindo, segundo o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), que completa 30 anos neste 2014. A produção é diversificada, de itens in natura a beneficiados. Parte vem de cooperados, parte de produtores individuais.


O desafio é alcançar o mercado consumidor, já que os pequenos produtores enfrentam dificuldades de inserção no sistema de distribuição. “O ­primeiro princípio é primar pela soberania alimentar. Diversificar. O segundo é organizar as linhas de produção para agregar valor. São 150 mil famílias assentadas, todas produzem”, diz Antonio Miranda, do setor de produção nacional do MST.

Para o presidente da Cooperativa dos Assentados de Reforma Agrária e Pequenos Produtores da Região de Itapeva (Coapri), Sebastião Aranha, ele mesmo um ex-acampado, um sonho é colocar os produtos no mercado tradicional. “Ainda não tínhamos uma marca para negociar. Sempre se vendeu a granel. De uns anos para cá, começou a embalar. O feijão sai da roça, vem para o barracão e é embalado nos domínios da cooperativa.”


De lá sai o feijão Raízes da Terra – marca já destinada a merendas em muitas escolas públicas. “A cooperativa compra o feijão do assentado, embala e faz a distribuição via prefeituras”, conta Aranha. Na última safra, a cooperativa comercializou mais de 20 mil sacas de feijão, ou por volta de 1 milhão de quilos.


A agrovila onde trabalha seu Antônio abriga a Cooperativa de Produção Agropecuária Vó Aparecida (Copava), em ação há mais de duas décadas. Ali, trabalho, terra e renda são coletivos, e as moradias estão ao lado umas das outras. Ele mora a poucos metros de onde brotam produtos como alface, beterraba, cenoura, rúcula, cheiro-verde, berinjela, mandioca, pimentão, abóbora, jiló, quiabo. A cooperativa faz controle diário e mensal da produção, e o rateio é feito conforme as horas trabalhadas. Na última safra, dos 500 hectares agricultáveis saíram 307 toneladas de feijão, 810 toneladas de soja, 840 toneladas de milho e 1,1 mil toneladas de trigo, além de 110 mil litros de leite.


Integrante da administração da Copava, José Aparecido Ramos, o Zezinho, conta que a cooperativa tem 35 famílias, com 50 pessoas distribuídas em dez setores. Periodicamente, se reúne um conselho formado por um representante de cada setor. Ali também funcionam uma padaria (para consumo e encomendas) e um mercado, além de uma oficina para manutenção de máquinas. O mercado atende os cooperados e a vizinhança. O leite é distribuído aos sócios e também vendido. E de um alambique ao lado da padaria sai a cachaça da marca A Socialista.

Merenda


“A divisão de tarefas foi pela aptidão de cada um. Depois foi capacitando as pessoas”, diz a assentada Marisa de Fátima Almeida da Silva, que tem dois filhos, de 7 e 3 anos. Há um ano no local, Marisa já passou pela horta, pela cozinha, pelo resfriador de leite e pelo atendimento a visitas. Está novamente na horta. Planta, semeia, colhe, faz a irrigação, carpe, mantém o cultivo.


Parte significativa da produção é destinada ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). A Lei nº 11.947, de 2009, determina que pelo menos 30% dos recursos vindos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)­ para esse fim venham de produtos da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando assentamentos de reforma agrária, comunidades indígenas e quilombolas. O orçamento do Pnae para este ano é de R$ 3,5 bilhões.


Outra fonte é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), surgido em 2003, no início do governo Lula, por meio da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Segundo a Conab, pelo programa são adquiridos 511 produtos, com destaque para banana, raiz de mandioca, alface, laranja, abóbora e feijão. Os alimentos são destinados a hospitais, creches, escolas, asilos, restaurantes populares e cozinhas comunitárias.


Quando começou, o PAA chegou a ­41 mil­­ agricultores familiares, 65 projetos e R$ 81,5 milhões em recursos. Em 2012, chegou a 129 mil agricultores, com 2.600 projetos e R$ 585 milhões. No ano passado, caiu bruscamente, para os mesmos 41 mil agricultores de dez anos antes, 887 projetos e R$ 225 milhões. A Conab informa que isso se deve, principalmente, a duas questões. A primeira é o início do Plano de Fiscalização do PAA. A companhia diz que, antes, o plano era vistoriado por órgãos de controle do governo, enquanto à Conab cabia a supervisão. A partir de 2003, a Superintendência de Fiscalização passou a realizar inspeções periódicas e “de forma mais rigorosa que as supervisões”.


Além disso, o clima foi desfavorável à execução do PAA, principalmente na região Nordeste. A produção caiu e o número de projetos inscritos também. 


Mesmo assim, em março, último dado disponível, o PAA movimentou R$ 24,4 milhões, valor 44% acima de igual perío­do de 2012, até então o melhor resultado. “É o melhor início das operações do programa desde sua criação”, declarou a superintendente de Suporte à Agricultura Familiar da Conab, Kelma Cruz.




Crédito

Enquanto observa no galpão um lote com aproximadamente 250 sacas de feijão, em maquinário comprado de outra cooperativa, no Pontal do Paranapanema, e manuseado por três filhos de assentados, Aranha comenta que uma das grandes dificuldades para o pequeno produtor ainda é o crédito. “Às vezes anunciam milhões para a agricultura familiar, mas poucos têm acesso. Você pede um crédito, ele vem depois da safra. A liberação de recursos é muito difícil, muito devagar.” Outra questão a enfrentar é da formação. “Quem faz a assistência técnica são as lojas de veneno”, acrescenta Aranha, referindo-se aos fornecedores. “A formação nas universidades é voltada para as grandes áreas. Mas quem produz comida mesmo é o pequeno agricultor.”


Na Agrovila I, que completa 30 anos neste 13 de maio, estão assentadas 80 famílias, entre cooperados e produtores individuais. O feijão colhido nesta safra é levado para um barracão. Ali, até os anos 2000, eram organizadas as festas para comemorar o aniversário do assentamento, o primeiro da região, onde ficava, em uma área pública, a Fazenda Pirituba. De lá, o feijão será conduzido à central, empacotado e levado às prefeituras.


A poucos metros está a escola municipal Professora Terezinha de Moura Rodrigues Gomes, homenagem a uma docente da região que se aposentou justamente em 1984. Espalhadas, é possível observar áreas de cultivo de quintal. “Todo mundo já tinha uma hortinha. Mas o PAA incentivou bastante”, conta a técnica agrícola Fabiana Fagundes da Silva, no último ano do curso de Agronomia. Em um desses canteiros, o de dona Telma Alves, são cultivadas hortaliças e frutas. “Este ano, a partir de julho, vai entregar ponkan também.” No local onde antes aviões espalhavam agrotóxicos, hoje a produção de orgânicos começa a se tornar realidade, caso da área trabalhada por Telma e seus quatro filhos. “Ela já começou um processo de transição”, diz Fabiana. A maioria dos produtores de quintal é de orgânicos.


“Uma das grandes metas nossas é trazer a produção agroecológica para o assentamento”, diz Sebastião Aranha. “É um processo longo. A assistência técnica hoje é veneno. Estamos tentando rearticular o instituto de ensino, para pensar em um novo modelo.”


Incentivo


Miranda, do MST, que tinha 11 anos quando o pai ingressou em um acampamento no Paraná, defende a mudança de modelo. “Hoje estamos num processo de conversão. Falta investimento, falta política pública. Já temos várias experiências. No Rio Grande do Sul, começamos com cinco, hoje temos 1.500 famílias. No Paraná, queremos colocar o primeiro laticínio de leite orgânico. É um debate sobre o modelo de produção. O problema é a falta de incentivo”, afirma.

Ele estima que 30% da base, no setor produtivo, já produz de maneira agroecológica ou agro-orgânica. “Temos de dar o salto. O modelo atual de agronegócio está inviável. O impacto no ambiente e na saúde é grande. Precisamos discutir com a sociedade outro modelo de campo, respeitando a biodiversidade. Isso não vai ser feito só pelo MST, tem de envolver setores urbanos.”

Pertinho da horta de Telma, praticamente em outro quintal, Tino manuseia sementes em um viveiro, ajudado por Rita de Cássia dos Anjos. Alface, beterraba, salsinha. É semear e irrigar até quatro vezes por dia, para a muda crescer, ensina Ezequiel Rodrigues de Souza, olhando para 250 bandejas de mudas espalhadas no local. Com a proximidade do inverno, predominam culturas como repolho, brócolis, alface crespa e beterraba. No verão, alface lisa, berinjela, pimentão, pimenta. A família veio do Paraná. “Vim com 7 anos. Cresci no assentamento, ajudando o pai e a mãe”, conta Tino, hoje com 37 anos e perto de concluir a faculdade de Engenharia Florestal.


Mais alguns passos, atravessando a estradinha de terra, se encontra a Usina do Leite. O produto vem dos sete assentamentos organizados na região. Também irá para escolas, em parceria com a Secretaria Municipal de Agricultura e Abastecimento de Itapeva.


Renda

Leite é o carro-chefe na produção do assentamento Valmir Mota de Oliveira, em Cascavel, oeste do Paraná, conta Amelindo Rosa, também do setor de produção do MST. O nome do assentamento homenageia Keno, assassinado em outubro de 2007. “É rara a família que não tem na sua renda a produção de leite”, diz. O Valmir Mota tem 83 famílias. Está perto da cidade, na BR-277, que liga a Curitiba. “Estamos perto do parque industrial, um lugar privilegiado.”


Em todo o estado, são 321 assentamentos, com 28 mil famílias. Da marca Campo Vivo saem produtos como arroz, requeijão, iogurte, queijo (minas, colonial, mussarela) e manteiga, vendidos em alguns supermercados. Há também o arroz Produtos da Terra e erva-mate, na região central. A parte da produção que conseguem industrializar é pequena ainda. “Quem produz e vende in natura não agrega tanto valor”, afirma Amelindo. “Estamos pensando nessa parte do beneficiamento. O maior desafio é como a gente organiza essa produção para escoar.”


A produção de orgânicos evolui. “Temos uma iniciativa até bonita aqui”, diz, citando quatro escolas de agroecologia no estado e a quarta edição da Jornada de Agroecologia, marcada para 21 a 24 de maio, em Maringá. “Há vários assentamentos que têm essa definição política.” O Valmir Mota é um deles. “Na seleção das famílias, quem veio para cá já foi com esse entendimento. Há, de fato, um amadurecimento sobre a necessidade de se produzir alimentos limpos. Nosso dilema é como organizar a produção para dar renda.”


No caso da Campo Vivo, ainda existe uma contradição, ele admite, à medida que há produtos não orgânicos indo para o mercado. O que exige investimentos na agroindústria e em linhas de comercialização. “Uma tarefa que não é fácil e não deve ser só nossa. Há um processo de conscientização da sociedade de procurar produtos orgânicos. Quando você domina o processo, diminui o custo de produção.”


Colheita premiada


Em Itaberá, vizinha a Itapeva, há 21 anos um grupo de mulheres começou a desenvolver a produção de fitoterápicos, à base de plantas medicinais. Em 2009, foi registrada a Cooperativa de Produtores de Plantas Medicinais da Agricultura Familiar (Cooplantas), com 32 mulheres e dois homens. Em 2013, a Cooplantas foi finalista do prêmio “Mulheres Rurais que produzem o Brasil Sustentável”, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. No local se desenvolve um projeto de reflorestamento, por meio do plantio dessas espécies, em conjunto com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Parte da produção se destina à rede pública, por meio do Sistema Única de Saúde (SUS).


“Essa é uma cultura de nossos avós”, diz a cooperada Nazaré Carvalho, há mais de 20 anos ajudando a organizar a produção. Creme de calêndula, própolis, arnica, pomada de barbatimão, de aroeira ou a chamada ‘milagrosa’. – “O nosso carro-chefe” –, tintura de carqueja, sabonete de mel e própolis, ervas secas... “Tudo é de nossas hortas”, ressalta a alagoana que se orgulha de um enorme mandacaru diante de sua casa. Os produtos são vendidos em feiras livres e universidades. “Tem gente que vem comprar aqui.”




Nordeste persistente

No município de Simão Dias, agreste sergipano, a 100 quilômetros de Aracaju, o assentamento 8 de Outubro – originário de uma ocupação feita em 1997 – ostenta a condição de maior produtor de abóbora da região Nordeste e principal produtor de grãos do estado. Na safra passada, saíram de lá 15 caminhões de 15 toneladas cada, referência usada pelos agricultores para mensurar a produção de abóbora. Outro produto de destaque, o milho, somou mais de 100 mil sacas (de 60 quilos cada). “Não só furamos o bloqueio da comercialização, como viramos referência na região”, diz o assentado Esmeraldo Leal. Ele conta que a “abóbora dos sem-terra” virou uma espécie de selo. “Falar a procedência já era garantia de qualidade.”


Isso estimulou a economia local, acrescenta. Para Esmeraldo, pode-se falar em uma marca antes e depois da entrada dos trabalhadores rurais. “Quem tinha terra abandonada passou a produzir por medo, de ser classificado de improdutivo”, conta. Ele lembra que Simão Dias foi um grande produtor de algodão até meados do século passado, até uma praga, chamada do bicudo (um inseto), dizimar a cultura.


A abóbora in natura segue principalmente para Recife, onde será vendida no Ceasa. O milho vai para casas de farinha de milho e granjas em Pernambuco e na Paraíba. Atualmente a produção de abóbora refluiu por causa de pragas, mas a expectativa é de que volte a crescer. Neste momento, o milho “está dando mais preço” no mercado.


Essa realidade, entretanto, não é uma regra na região. “Em Alagoas, a produção primária que ainda predomina segue desacompanhada de políticas estruturantes, como a agroindústria”, comenta Débora Nunes, do setor de produção do MST. E com suas peculiaridades. A macaxeira, por exemplo, item de destaque, precisa ser vendida no mesmo dia na feira. Assim como o inhame, a batata-doce, o feijão de corda, outros produtos tradicionais. Tem crescido a produção de abacaxi, laranja, maracujá, abóbora, mas Débora ressalta dificuldades de acesso aos programas públicos (PAA e Pnae). “Temos forçado as prefeituras. Mas o grande canal nosso de comercialização são as feiras, onde há fidelização entre nós, que produzimos, e o consumidor”, conta, valorizando a realização, há 14 anos, de uma feira estadual em todo mês de setembro.


Ela, que atua na zona da mata, vê a comercialização também como um dos entraves para o crescimento do negócio entre os pequenos produtores, mas alerta que a falta de compreensão do consumidor também é parte do problema. “A sociedade precisa definir o que quer comer, comida envenenada ou comida saudável.”


Em todo o estado, são 70 assentamentos e 3 mil famílias, predominantemente na zona da mata, e 560 estão no sertão. Entre elas a do assentado Cleilson Moreira da Silva, o Marquinhos. “Ainda falta incentivo do governo federal, estadual e dos municipais”, reitera Marquinhos, instalado no assentamento Maria Bonita, em Delmiro Gouveia (a 300 quilômetros de Maceió), onde 78 famílias cultivam palma (para alimentação de animais), milho, feijão, abóbora, melancia. Ele lamenta que os produtores ainda permaneçam excluídos de políticas públicas. “A gente fica de fora porque é uma burocracia danada para chegar até nós. Os gestores dificultam.”


Sua região vê com boas perspectivas o projeto Plantando Caju, Colhendo Desenvolvimento, com apoio da Petrobras. “Vai dar um salto de qualidade. A gente percebe as famílias com ansiedade.” Hoje, a produção é ainda praticamente toda vendida aos chamados atravessadores, além das feiras livres, de oito em oito dias. Marquinhos – que ficou com esse “apelido” em lembrança de um amigo que morreu – destaca ainda as chamadas feiras da reforma agrária, realizadas periodicamente.


No projeto do caju, a ideia é desenvolver as mudas em um viveiro (de 600 metros quadrados), no próprio assentamento, e organizar uma agroindústria para vender doces e outros produtos. No final de abril, 18 pessoas passavam por um processo de capacitação sob responsabilidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). “A região tem potencial para fruticultura, verduras. Precisa de apoio.” Aos 34 anos, Marquinhos nunca deixou o sertão e, com a metade da idade, lembra seu Antônio, lá de Itapeva. “Desde criança eu trabalho na terra. Não sei fazer outra coisa.”

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